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369- Seguro de responsabilidade civil. Sim ou não?

IMG_5378 (1)Este artigo foi publicado originalmente no Boletim de informações urológicas novembro/dezembro 2016 da Secção São Paulo da Sociedade Brasileira de Urologia

 

Entendo que as desvantagens são superiores às vantagens na adoção de um seguro de responsabilidade civil pelo médico de natureza obrigatória ou por adesão voluntária. Para chegar a esta opinião, considerei a raridade com que médicos brasileiros com números mais baixos de CRM viram-se condenados a indenizar pacientes, o potencial de aumento da incidência de ações movido pela facilitação de pagamentos por uma companhia seguradora e a instalação de um clima de atendimento mais conflituoso e menos oxigenado da precaução pela excelência. Mas é uma opinião, tão somente, e o debate deve ser estimulado em face da tendência de ampliação de decisões pelo ressarcimento de danos.

Tenho percebido que o tema causa certa surpresa no jovem médico cônscio da responsabilidade para fazer o melhor bem clínico  para o paciente, treinado e dedicado, mas com baixa quilometragem de realidades profissionais. Por isso, aproveito a oportunidade para endereçar considerações a respeito da relação médico-paciente como interesse segurável para as novas gerações de médicos atuantes sob o olhar ético e legal da sociedade cada vez mais reivindicadora de direitos.

Jovem médico, o órgão mais sensível do ser humano é o bolso. Não anatômico, dele você não aprendeu na Faculdade, mas deve cuidar do próprio em meio ao profissionalismo. Assim a interrogação do título representa inquietudes com ameaças ao seu patrimônio, pois o habitualmente prudente, zeloso e perito aprende que o ganho de experiência é cheio de surpresas, acidentes acontecem e o paciente de hoje pode ser um impaciente de amanhã.

Saiba jovem médico que a responsabilidade civil diz respeito a causar dano a outrem agindo com imprudência, negligência ou imperícia. Isto faz supor que o médico pode fazer mal ao paciente. De fato, há médicos eticopatas,  uma minoria  praticante de ilicitudes morais recorrentes e há a maioria eticófila que honra o número de CRM, mas sujeita à eventualidade de ser denunciado como transgressor da Ética, ou porque cometeu de fato uma falta, ou  por comportamentos não pressupostos e imprevisíveis de terceiros.

Creio que a Bioética pode contribuir para a sua ponderação sobre o dilema Seguro sim ou Seguro não?. A Bioética pode subsidiar o seu juízo sobre o valor da competência profissional no trato da questão, na medida em que ela oferece uma plataforma útil para organização de estratégias de conduta de peso bastante para cumprimento de exigências da responsabilidade profissional. A execução da boa-fé assim orientada não é uma vacina contra sinistralidades, porém é pedagogia que afasta muitas etiopatogenias de ilicitudes éticas e legais que aproximam o médico de tribunais.

A Bioética enfatiza, especialmente nas situações de eletividade de conduta, a sequência de fases éticas – tomada de decisão e aplicação- separadas pelo direito adquirido do paciente-cidadão de emitir consentimento às recomendações.

Desta maneira, jovem médico, imagine a sua responsabilidade civil orbitando pelo ato do consentimento, pelas autorizações decorrentes e pelas expectativas assim geradas. Isto, claro, após esclarecimentos ao paciente/familiares, não apenas quanto ao procedimento mas, especialmente, em face de eventuais efeitos adversos. Um não consentimento pelo paciente que, por exemplo, impede fazer, presumivelmente desmotiva interpretações de descuido, desde que isentas de má-fé.

Atuar com prudência é preocupar-se com o futuro, vale dizer com resultados de decisões, o que no campo da Medicina concentra-se numa sustentação estatística. É imprescindível que você processe tomadas de decisão firmemente apoiado na prudência. É a virtude que energiza o uso do lápis do benefício conceitual que você aprende na literatura e da borracha da segurança para o paciente que você aprende na beira do leito. É a prudência que lhe proporciona este alter ego retratista que está frequentemente ajustando um redesenho de conduta com maior fidelidade possível à cara clínica do caso. É por isso que você deve utilizar as diretrizes clínicas como bússolas e não aceitá-las algemas a idas-e-vindas sobre a  melhor relação benefício/segurança para o paciente.

A figura do uso da borracha para o encontro do traçado mais adequado significa que você valoriza previsões de danos. Mas, evidentemente, não o faz um profeta, essencialmente por lidar com biologia. Por isso, (mais) segurança, (não eliminação) insegurança e (?) seguro formam uma tríade complexa. Razão para que você jovem médico tenha a prudência para si de documentar a afirmação do cuidado de ter sido fiel retratista daquele paciente no calor do atendimento, justificando os redesenhos, assim  antecipando em prontuário a contraposição a possibilidades de futuras alegações de não superposição aos frios textos do que seria da responsabilidade. Você deve conhecer um ditado popular que não há como prever o que sairá da cabeça de um juiz, pois é, hoje em dia não há como prever também o que pode sair da cabeça de um paciente e, (in)justamente, provocar um julgamento.

Jovem médico, proporcione o máximo de esclarecimento/compreensão quando apresentar a recomendação ao paciente. Aliás, o ideal, sempre que possível, é você dar oportunidade ao paciente de já se expressar e receber explicações por ocasião das intermitências entre lápis e borracha. É como se fossem doses de prudência e de seguro – infelizmente não quantum satis. O objetivo primário é concluir esta primeira fase pelo consentimento- ou não- ao retrato final e decorrências.

O consentimento é expressão da autodeterminação do paciente, mas não espere dele a cabeça de médico, como você gostaria. O paciente é leigo, sofre influências de familiares, circunstantes, disposições da vida pessoal, particularidades da inserção social e profissional e preenche lacunas com imaginação e analogias que desfocam e prejudicam uma manifestação de consentimento de fato autêntica, sem vieses. Desta maneira, muitos sim podem permanecer mal homogeneizados na mente do paciente e viram estilhaços causadores de feridas ressentidas em situações evolutivas desfavoráveis. Outro ponto de referência, jovem médico, para Seguro sim ou Seguro não?

O enfim consentido deve ser alvo do zelo na sua condução, segundo as expectativas de habilidade para transformar métodos em resultados. Por mais que o progresso técnico-científico da Medicina tenha elevado o entusiasmo alopático, ainda persiste o clima de ciência da incerteza e arte da probabilidade conforme legado por  William Bart Osler (1849-1919).

Seguro sim ou Seguro não? é decisão que requer entender a expressão   contemporânea de iatrogenia. O termo significa o que foi causado pelo médico, mas também deve ser entendido como causado pela Medicina e deve ser descolado da conotação simplista de erro profissional. A diferenciação é fundamental. A iatrogenia referida à Medicina é a intercorrência, a adversidade, a má evolução, ligadas às imperfeições de métodos bem aplicados e cujos benefícios majoritários determinaram a validação universal. Elas ocorrem independentes do zelo do médico, porque todo procedimento associa-se a riscos- bulas ilustram-, e estatísticas de grandes Centros e Serviços atestam que inexiste iatrogenia zero. Mas como as causas dos danos são enxergadas na mão aplicadora do profissional, o bolso do médico tem razões para ficar incomodado.

Por fim, é essencial frisar que suas análises sobre o diagnóstico diferencial entre erro profissional e má consequências de acertos decisórios e operacionais  devem incluir além da Medicina e do médico, créditos de danos ao paciente não aderente e a impropriedades da instituição de saúde e do sistema de saúde. Por isso, nunca desvalorize as reinvindicações de classe por trabalho digno como ponto de referência para Seguro sim ou Seguro não?

Jovem médico, para formatar Seguro sim ou Seguro não? considere fortemente como matérias-primas a sua percepção da qualidade de estar médico, a sua visão sobre as realidades nem sempre bem-vindas da condição humana e o quanto de estesia financeira cabe no seu bolso.

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