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360- Bioética e percalços do progresso científico

Um ponto atraente da Bioética  é  conhecer e analisar pontos de vista distintos sobre um determinado tema. O que num primeiro momento podemos classificar de modo maniqueista como bom/mau, certo/errado, saudável/doentio, sofre transformações, passamos a entender melhor  as contraposições, ajustamos nossas posições ou reforçamos a inicial com mais convicção.

Aprendemos que haverá sempre um argumento inédito para nós, que rejeitamos total ou parcialmente, ou que se encaixa no  “ele tem razão”, “porque não pensei nisso antes”, “abalou a minha opinião”.

Na beira do leito, na relação médico-paciente, a  tolerância no sentido de aceitar o que poderia ser condenado, é deixar fazer o que se poderia impedir ou combater, portanto, renunciar a uma parte de seu poder, de sua força (André Comte Sponville- nascido em 1952) é essencial no processo de recomendação/consentimento.

Aliás, a Medicina pautou-se sempre por desacordos de opinião, de interpretação de dados ou fatos como evidências e de entendimento do significado de ser médico e de ser paciente. Por mais que sejam desejadas, normatizações de condutas persistem sujeitas a juízos de momentaneidades. A cautela sobre verdades incorporou-se ao médico ético.

O desenvolvimento da manipulação genética vai de vento em popa. Há muitas expectativas sobre a evitação de certas doenças hereditárias por atuação na fecundação. Há muitos sonhos de determinar certos fenótipos e habilidades ao futuro ser humano. A preocupação maior é com o lado sombrio da provocação de resultados inesperados e até mesmo inversos aos pretendidos. Mas, em geral, o progresso técnico-científico é visto com otimismo dentro deste realismo de dúvidas e apreensões.

A natureza quântica dos movimentos da ciência e da tecnologia no âmbito da Medicina contemporânea faz supor que é praticamente impossível evitar alguma manifestação de inquietação em meio a majoritárias esperanças de benefício. Um saudosista aqui, um misoneísta ali não deixam calar vozes discordantes. Invoca-se a clínica soberana contra o poder das imagens, alçam-se adversidades sem expressão estatística inseridas na bula do medicamento num plano superior a de validação de indicação beneficente.

O habitual é que o tempo, num prazo mais ou menos curto, encarregue-se de fazer ajustes na rotina, vale dizer, encaminhar a inovação para que ela se torne clássico. Exemplo foi o surgimento da técnica laparoscópica que logo fez cirurgiões trocarem com vantagem uma incisão de muitos centímetros na barriga por uns poucos furinhos.

Recentemente, noticiou-se que experiências em rato com terapia genética para a surdez abriram perspectivas favoráveis à reversão de deficiências auditivas. ampliando sobremaneira o alcance e eficiência dos atuais implantes cocleares http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1525001616454341.

E aí surge uma questão de interesse da Bioética. Uma hipotética radical erradicação de casos de deficiência auditiva, entusiasmante para um futuro mais saudável, foi  criticada  por um grupo de pessoas que argumentaram que  a redução de membros da comunidade de deficientes auditivos resultará em desmotivação para políticas de apoio. por exemplo, disponibilidade de ensino da linguagem de sinais, como a nossa Libra.

Esta consideração é sustentada por aqueles que entendem que mais do que um grupo de pessoas com deficiência, os deficientes auditivos constituem uma etnia por compartilharem costumes, estrutura social, linguagem, aspectos artísticos e história. Razão para apontarem a eliminação ou a cura da surdez com uma forma de genocídio cultural. https://impactethics.ca/2017/03/02/gene-therapy-a-threat-to-the-deaf-community/.

A Medicina lida com reabilitação pós-enfermidades, readaptações por perdas de funções. Parece que benefícios de manipulação genética do ser humano implicarão na necessidade de medidas de apoio social a comunidades de diagnósticos que desaparecerão e assim os remanescentes conviverão com perdas do interesse por disponibilidades de sustentação- fármacos, facilidades por tecnologia, programas de benefícios.

Uma dívida carrega o paradoxo de quanto mais se contrai, mais ela se expande. Temas de interesse da Bioética, como o acima relatado também,  quanto mais se tornam minoria, mais necessitam de atenção da maioria.

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