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348- Sigilo médico, segurança e cebola

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Hipócrates (460ac-370ac) afastou a Medicina da religião e assumiu um papel de criador. Ele gerou a natureza do sigilo médico, criatura que se tornou bem máximo profissional. Como se trata de algo em plano superior, o respeito ao mesmo só pode tender a cair, Desde então, pois, teme-se a degeneração desta crença, sintetizada na mordaz manifestação de Benjamin Franklin (1706-1790) sobre a condição humana: Três pessoas podem guardar um segredo, se duas delas estiverem mortas.

Transcorridos cerca de 2500 anos dese Hipócrates, o Código de Ética Médica lembrar ao médico brasileiro que lhe é vedado fazer revelações inapropriadas sobre o paciente. Aliás, a análise comparativa dos Códigos de Ética Médica que já existiram no Brasil revela uma mistura de ajustes a progressos da Medicina e a reformulações da sociedade e de manutenção do passado. Exemplo deste último é a preservação da necessidade de o paciente confessar ao médico sobre si e fazer-se conhecer quanto a diagnósticos, tratamentos e prognósticos com plena confiança que os conteúdos serão usados para o seu bem clínico e que nunca serão revelados para lhe causar danos morais. Acresce a extensão deste comportamento de discrição profissional para todos aqueles que por razão do trabalho municiam dados e fatos ao prontuário do paciente ou têm acesso privilegiado ao mesmo.

Cada paciente pode entender o resguardo de exposição a sua maneira e, assim, estabelecer níveis de confidência. Por isso, a propriedade da informação permite ao paciente manifestar-se pela quebra do sigilo e expressamente autorizar o médico a fazer revelações. Ademais, há exceções ao sigilo representadas pelo interesse coletivo em notificações compulsórias de certas doenças e por um saco de gatos denominado de justa causa. Reproduzo no quadro as palavras de Genival Veloso de França sobre justa causa em Comentários ao Código de Ética Médica, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A, 1994.

GVF

Novas disponibilidades tecnológicas impactam diuturnamente na Medicina, ampliando o número de pessoas detetoras de informações sobre os pacientes. São exames diferentes do praticado pelo sigiloso estetoscópio, magnificamente ilustrativos com textos-laudos tanto mais ajustados quanto mais informados da clínica, que contribuem sobremaneira para quebrar o sigilo das doenças, mas ampliam as possibilidades de quebra do sigilo profissional. As próximas décadas prometem sucessivas e surpreendentes maneiras de atenção às necessidades de saúde que trazem preocupações para a adaptação à preservação do sigilo profissional.

Neste contexto, a expansão da comunicação inter-pessoal (inclui inter-profissional) por meio de aparelhos e de aplicativos foi captada para dar agilidade e segurança para a resolução de várias necessidades da relação médico-paciente. Todavia, estes ares de modernidade sujeitam-se a um processo contundente de destruição de sigilo batizado de virilizar, por ironia, um termo emprestado da Medicina -facilidade de contaminação pessoa a pessoa-, que na figura de um clique tão divulgador quanto violador é grande ameaça atual da sacralidade do sigilo profissional.

O sigilo médico de essência hipocrática é uma entidade. Ele tem vida própria que inadmite visões progressistas, no máximo um cauteloso ajuste aqui outro ali. Não se trata de uma renitente adoração ao passado, o que pode ser comprovado pela observação que a multiplicidade de compartilhamento de informações da modernidade interdisciplinar e multiprofissional não abalou a sua fundamentação hipocrática, além do reforço de atenção sobre maior número de intervenientes.

É a segurança, nova designação da não maleficência utilizada pela Bioética da Beira do leito, que ajuíza a confidencialidade no lidar com as informações do paciente. A segurança clínica demanda compartilhamentos éticos que pelos benefícios presumidos podem ser objeto de consentimento do paciente. A segurança moral, como comentado, está sujeita à heteronomia histórica, pressuposição de inadmissibilidade de quebras do sigilo pelo médico, a não ser que o paciente manifeste-se em contrário.

Neste século XXI, a questão da revelação de informações sobre o paciente no contexto do sigilo profissional e sob influência do temor viral em ausência de vacinas comportamentais contra estas virulências, poderia admitir a figura da cebola, inspirado em Hanna Arendt (1906-1975) quando ela discorre sobre Autoridade em Entre o Passado e o Futuro, Editora Perspectiva, São Paulo, 1972.

cebolaNo centro estaria o paciente protegido e rodeado por várias camadas de segurança. As mais internas corresponderiam à segurança clínica, cada uma delas representando contribuições das áreas de atuação sobre a doença em si. As mais externas seriam as guardiãs da segurança moral que impedem movimentos entre si de comunicação que não objetivem um sentido centrípeto, vale dizer, estariam obrigatoriamente orientados para o núcleo da intimidade do paciente. Assim conjuga riam reciprocidade, benefício e  segurança.

Como se sabe, lidar com cebolas pode provocar lágrimas, por isso, o valor do respeito irrestrito à configuração histórica deste patrimônio social chamado sigilo médico.

 

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