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342- Erros ensinam para sempre

Aprendi muito com erros, os meus e os dos outros, boa parte deles ficaram marcados, e, assim, habituais conselheiros fortalecem o pró-acerto pela prudência e pelo zelo. Há muito desta orientação na beira do leito. O médico – e quanto mais jovem, maior a densidade da assimilação- tem no paciente a fonte inesgotável de ensinamentos pelo convívio profissional de perto e prolongado e pela relação pessoal de confiança.

Quanto mais for um personal doctor, quanto mais tiver expandida a dedicação, quanto mais estar partícipe de ambientes coletivos de interesse na saúde e quanto mais se mostrar determinado a solilóquios para livre exame do ecossistema em que atua, mais oportunidades terá para aprimorar o ser médico, ampliar as dimensões da vida de modo geral  e ganhar motivação para a apreciação crítica de leis, códigos, normas a que está sujeito.

A amplitude de descortino que inclui a recusa a ser acrítico da profissão é amálgama para o médico juntar-se a outros no campo da Bioética pretendendo uma expansão de saber e sabedoria pelo convívio multiprofissional e interdisciplinar. De um modo relativamente passivo pela simples observação ou ativo por uma participação executiva, o médico, lidando com a Bioética, conhece uma quantidade de erros, que se por um lado pode ajudar a reparar,  por outro, lhe serve de norte para prevenção dos próprios.

Erros profissionais na beira do leito incluem a não conformidade com o conhecimento técnico-científico da Medicina validado, atualizado e submetido a ajustes às circunstâncias de cada caso e a transgressão de natureza moral.

A Bioética lida com as intimidades do erro profissional, um termo que sempre soa agressivo, que muitos preferem amenizar por sinônimos ou por eufemismos, que admite interpretações de endosso ou de desconsideração, que trilha por ambiguações, que desperta ódio e compaixão, que  exige pena nos seus variados sentidos, que motiva desculpas pelo dano ou pela falsa interpretação e que, sobretudo, instrui, aliás, dentro da amenização da consciência e voto de auto-lapidação representados pela expressão errar é humano, insistir é insensatez.

Entendo que o solilóquio é instrumento essencial do ser médico perante uma cogitação de erro profissional por si próprio – estou fazendo (fiz) uma besteira?- ou por outros. O diálogo com a própria consciência é essencial, não somente para a sinceridade do reconhecimento do eventual erro praticado ou para a rejeição convicta de prática equivocada, como também para evitar certas rotas de atitudes que deixaram o erro profissional no quase, enfim não praticado.

Outro aspecto que os interessados em Bioética compartilham é uma análise mais conceitual e ampla acerca das situações que envolvem as práticas de erros profissionais. Pontos de referências mais ligados à lógica ou à moral, habitualmente mesclados em proporções variadas, devem, não somente, sustentar a avaliação da presença ou não de erros e a sugestão de reparações conforme textos e pensamentos vigentes, como também, a apreciação crítica sobre as fundamentações vigentes, que como se sabe, movimentam-se com o tempo e, não raramente, representam terreno movediço.

Interessados em Bioética praticam ginástica de neurônios com frequência na busca de massa crítica para lidar com preocupações constantes com o status quo que ampara  certo ou errado. De fato, na beira do leito, o estado atual das coisas mescla tradições que parecem eternas e renovações que acompanham novos tempos cada vez mais acelerados da Medicina e da sociedade. Estímulos a exercícios de caça de incoerências não faltam, simplesmente porque leis e artigos do Código de Ética Médica não são vitalícios, admitem vieses ideológicos e controvérsias legítimas.

O aborto é permitido no Brasil  quando adjetivado de terapêutico pelo entendimento de prioridade da  gestante sobre o feto ou porque há risco de vida para a mesma – que tem obrigação com outros filhos ou poderá engravidar num futuro- ou porque ela assim deseja porque foi vítima de estrupo.  Em ambas as circunstâncias, o mesmo argumento sobre o respeito à vida que fica num primeiro plano para o impedimento legal à liberação em geral da escolha pessoal de não se manter grávida passa para um segundo plano. Uma gangorra de apreciação de coerência e incoerência pode passar pela cabeça dos interessados em Bioética.

Há outros aspectos interessantes que acontecem numa zona cinzenta de certo/errado. Examinar o paciente dá eticidade a um atestado de saúde, o que não exclui a possibilidade de uma falsidade na determinação de um prazo justo de afastamento. O paciente precisa dar o consentimento ao médico para a realização de uma intervenção, porém o sim pode ter sido obtido após a revelação de um único método sem esclarecimentos sobre prós e contras de de outros também aplicáveis.  Nesta mesma linha de contraposições, tem a situação da  informação ao paciente SUS sobre um fármaco mais eficaz, disponível no mercado, mas sem chance de poder ser fornecido pela rede pública e que coloca a objeção de consciência do médico (não)prescritor numa rota de colisão com o gestor e com a judicialização da Medicina.

A Bioética tem compromisso com o apoio ao médico para que ele ponha o dedo nas feridas de ambiguidades certo/errado na beira do leito e seja permanentemente crítico com as plataformas técnico-científicas e de atitudes que a vida profissional lhe apresenta em constante movimentação. Os processos de tomadas de decisão admitem a presunção de acertos e erros em função da análise de prudência, porém acertos presumidos podem vir a ser reconhecidos como erros. Cada aprendizado assim incorporado representa o que o  compositor e maestro Igor Stravinsky (1882-1971) ensinou: “… Eu aprendi a ser compositor principalmente através dos meus erros e  de falsos pressupostos, muito mais do que me expondo a fontes de sabedoria e conhecimento…”.

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