PUBLICAÇÕES DESDE 2014

264- Amém no consentimento

Pode-se dizer que o ato médico é respeitoso à crença religiosa do paciente. Alguns dirão que é mais por falta de participação do que por efetiva consideração da religiosidade. A preocupação ética data do primeiro Código de Ética brasileiro, o Código de Moral Médica (1929) no teor do Art. 7º- O médico deverá respeitar as crenças religiosas de seus clientes, não se opondo em caso algum nem por qualquer motivo ao cumprimento dos preceitos religiosos.

É fato que o registro do paciente em hospital costuma incluir a sua religião. Em consultório, ele é menos frequente. De qualquer maneira a questão é: Até que ponto esta informação é utilizada e influencia o médico brasileiro em geral quando cuida do paciente? A resposta  mais provável é: A maioria dos médicos a ignora e as condutas são estruturadas sob mínima influência da mesma. Há mais uma visão de etnia do que de religião.

Assim, porque a experiência religiosa do paciente não é item habitual nem da anamnese nem do processo de tomada de decisão, o grau de religiosidade individual não é vislumbrado como fator de restrição ao consentimento do paciente que não se apresenta como uma autoridade religiosa. A exceção universal nesta visão de neutralidade religiosa é a crença Testemunha de Jeová. Ela tem grande efeito pedagógico acerca de significado e de consequências, de respeito ao paciente e de responsabilidade do médico e assim o conflito que  determina serve de alerta a todos que trabalham na beira do leito sobre como a condição humana, plural e nem sempre previsível, admite interpretações distintas sobre o benefício disponibilizado, comportamento que coloca a Ética Médica num verdadeiro labirinto.

Quanto à religião do médico, o Código de Ética Médica explicita como um dos fatores do direito de não ser discriminado na sociedade, redação introduzida na versão de 1988.  Já eventuais atitudes do médico na  conexão com o paciente ditadas por sua religiosidade podem ser referidas a sua autonomia e aos ditames da sua consciência- Princípio fundamental VII do Código de Ética Médica vigente: O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência. Exemplo praticamente solitário no contexto religioso é a recusa ao cumprimento de uma determinação judicial para a realização de um aborto legal e que poderá ser efetivado por algum colega que não se sinta moralmente impedido.

Portanto, religião e religiosidade na beira do leito ficam adstritas, comumente, ao pensamento do paciente que provoca, se tanto, pequenos ajustes e que tem o potencial de fortalecer a fé no sucesso dos cuidados com as necessidades de sua saúde que parte da confiança na perícia, na prudência e no zelo do médico e equipe. https://bioamigo.com.br/religiosidade-na-beira-do-leito/

Debates éticos em geral não devem ignorar as religiões. De fato, a religiosidade em seus níveis mais atuantes é fator capital na aceitação das inovações e dos aperfeiçoamentos técnico-científicos pela sociedade. A Bioética da Beira do leito valoriza a contribuição das religiões, endossa a expansão da interdisciplinaridade para a transdisciplinaridade- diálogo com conhecimentos não científicos-, com especial atenção para entendimentos de anti-natural e de moralmente inaceitável.  É fala essencial no amplo diálogo que se faz moralmente necessário num país multicultural, pluri étnico e secular como o Brasil. Recorde-se que a Constituição Federal assegura liberdade ao pluralismo religioso em seu território, um direito fundamental que inclui o dever de proteção contra a intolerância e o fanatismo religiosos.

Não faltam temas até há pouco inéditos desafiadores do binômio secular-religioso que se sucedem com aceleração crescente. É carrossel que reforça a importância da Bioética. Volta a volta, os cientistas motivam-se pelo bem-estar da Humanidade e estudam métodos criativos que podem trazer contraposições a tradições religiosas. Eles hierarquizam a preocupação com resultados sobre benefício -utilidade e eficácia- e sobre segurança.

Investigações clínicas moralmente aceitáveis pelos padrões vigentes concluídas com bons resultados cumprem pré-requisitos para inclusão no mercado, ou seja, habilitam-se à aprovação da sociedade representada por órgão governamental de proteção da saúde da população (ANVISA, no Brasil). As inovações, como as frequentes farmacológicas não costumam sofrer barreiras de ordem religiosa para o registro.

Todavia, alguns usos podem despertar apreciações de ordem moral. A anticoncepção tem uma bonita história neste sentido. É interessante lembrar do Art. 75º do Código de Moral Médica (1929): Ao médico é terminantemente proibido aconselhar sistemas ou processos destinados a impedir a fecundação da mulher. Poderá fazê-lo se teme que a gestação possa ocasionar transtornos graves na saúde da mulher ou determinar a agravação de enfermidades pré-existente; mas, nestes casos o medico assistente deverá provocar uma conferencia com outros colegas, com o fim de precisar a indicação e a urgência de semelhante procedimento. Recorde-se que os contraceptivos orais tornaram-se disponíveis cerca de 30 anos depois. 

No campo da sexualidade e religião, há adeptos do uso de certos fármacos anti-libido para que homens aspirantes a rabino não se sintam atraídos por mulheres não  incluídas nas rígidas normas de ultra-ortodoxos http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/15265161.2013.839752.

O tema do aborto parece não conter aspectos técnicos relevantes, há bastante experiência bem sucedida com a prática legal do mesmo. Já novidades trazem incertezas sobre aplicação e sobre evolução do método que se mesclam com questões de moralidade sensíveis a religiões. São os casos da engenharia genética ligada ao trans humanismo – aperfeiçoamento do Homo sapiens para “ficar esperto” com o rápido desenvolvimento da inteligência artificial-  e ao xeno transplante de órgão – células pancreáticas de porco, por exemplo, o que é uma expansão do uso de válvula de porco, rotineiro há cerca de 50 anos.

Há a tradição e há as transformações da sociedade que convivem em feedback com Códigos de Ética e moralidade. Propostas técnico-ceintíficas tão criativas quanto inesperadas têm o potencial de abalar convicções morais e provocar discussões éticas que não dispensam contextos históricos e sociais. O É proibido proibir tão ao gosto da Bioética – e dos cientistas em geral- ganha força na sociedade perante uma inovação em proporção ao grau de sensibilidade individual ou de um grupo para o tema. Podemos dizer que o médico e o paciente que se envolve por necessidade-inclui circunstantes como familiares- encontram-se mais sensíveis, vivenciam mais intensamente as expectativas. Já o segmento da sociedade distanciado do imediatismo de uso  costuma fazer uma análise crítica dita mais racional.

A Bioética contribui para que reflexões sobre inovações considerem os argumentos técnicos e de ordem moral com equilíbrio. A apreciação da fosfoetanolamina ilustra com as cores fortes do desespero ante a terminalidade  como pontos de vista quanto ao É proibido proibir tornam-se fundamentados pela Beneficência ligada à Medicina ou pela Autonomia associada ao paciente.

Ao mesmo tempo que evidências proporcionadas pela ciência são locomotivas bem intencionadas para o bem-estar da Humanidade, não pode ser ignorado que razões da condição humana, incluindo as de ordem religiosa, fazem com que vagões da sociedade a ela atrelem ao não.

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES