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223- Código mas não senha

Há muitos médicos que não se interessam em falar o idioma do Código de Ética Médica. Entendem que o aprendizado na prática dispensa a leitura. Sentem-se éticos, intrinsicamente éticos, confiantes na sua moralidade e é o que basta. A ordenação que fazem da beira do leito parece já embutir os artigos… que imaginam.

Todavia, nenhum médico pode alegar desconhecimento do código moral da profissão quando algum estado confuso acontece vindo do “seu nada”. O Juramento de Hipócrates na solenidade de formatura pressupõe o conhecimento e aplicação.

São mais de 100 artigos tratando de distintos temas no Código de Ética Médica vigente, atualizado após cerca de 20 anos. Eles são essenciais no desenvolvimento de consultorias de Bioética. Testemunho que um percentual expressivo de beiras do leito transformadas num atoleiro ético resultam de desconsiderações ao Código de Ética Médica. Em suma, poderiam ter sido evitados.

Contudo, não basta ter uma memória visual fantástica do texto dos artigos que vai permeando as condutas e as harmonizando à ética. É necessário ajustar às circunstâncias de momento. A Bioética da Beira do leito contribui para o apuro desta empreitada que  não é tão simples.

Relaciono a seguir 10 situações sensíveis a interpretações dinâmicas:

  1. Consentimento: O consentimento que referenda a tomada de decisão é genérica ou é específica? Se específica, como diferenciar o que está ou não consentido? Ajustes farmacológicos ou de técnicas cirúrgicas  no decorrer da conduta estão previamente avalizados pelo paciente? Cada novidade tem que ser consentida? Quais os critérios para limites?
  2. Proteção da vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: Pesquisas lidam com o desconhecido. O que se pretende superior pode resultar inferior. Danos são resultados admissíveis em face das imprevisibilidades. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido esclarece os riscos no que dá para esclarecer, deixa o paciente à vontade para participar ou não, todavia, não pode abranger todos os efeitos. O documento impede a coerção para inclusão -aspecto capital ligado à vulnerabilidade-consciência do ser humano-, mas o desenvolvimento do estudo implica em riscos à vulnerabilidade-biologia do ser humano. A ocorrência de um óbito com hipótese de ligação à inovação pode deve ser apreciada em relação aos demais voluntários de pesquisa? Ele deve ser comunicada a todos eles a fim de obtenção de uma renovação do consentimento?
  3. Internar e assistir seus pacientes em hospitais públicos e privados onde não faz parte do corpo clínico: Ocasionalmente, o paciente é internado num hospital e deseja  que o seu médico o assista assumindo plenamente o caso ou como adjuvante da equipe responsável pela internação. Uma autorização temporária do hospital costuma resolver a questão. Por vezes, o acionamento do Diretor clínico resolve mal-entendidos entre colegas. Outras vezes,  fatos políticos ou fatores econômicos causam impedimentos de acesso que nada têm a ver com justificáveis objeções de natureza ética ou técnico-científica, o que deve ser motivo de repúdio, mas que costuma ser “uma briga feia”.  No caso de um hospital que funciona com um estafe fechado sob uma organização rígida como um Hospital de Clínicas de determinada Faculdade de Medicina obedecendo a um sistema de saúde como o SUS, como deve ser interpretado o desejo de colega externo de  internar e cuidar de um seu paciente? A tradição mostra que é situação que costuma ser eliminada na origem do eventual pensamento. Mas e se um médico insistir? Quais são os argumentos éticos que validam a contraposição?
  4. Respeitar o direito do paciente decidir livremente e usar todos os meios disponíveis: É  potencial de  contraposição emblemática da Deontologia médica que demanda a Bioética. É clássica a  chance de gangorra entre os princípios da Beneficência – olhar técnico-científico- e da Autonomia – olhar humano em face de um não consentimento por parte do paciente.  O mais habitual tem sido privilegiar a Beneficência em situações de emergência e a Autonomia em situações eletivas. Não obstante, há muitas circunstâncias de urgência ( demanda celeridade em ausência de risco iminente de morte) que admitem certos adjetivos como relativa e que ficam mais ou na interface eletiva ou na interface emergência.
  5. É vedado abreviar a vida do paciente: A eutanásia não está legalizada no Brasil, que é a leitura socialmente correta do artigo. Todavia, o conhecimento da história natural de doenças perante um não consentimento a uma conduta reversora  que não admite muita perda de tempo sustenta a sensação de que a vida do paciente está sendo encurtada. É preciso muita discussão na formação do médico para enfrentar situações análogas que provocam inconformismos mas ao mesmo tempo exigem tolerância. É frustrante ter a mão habilidosa com uma caneta ou com um bisturi contida pelo não consentimento, mas é assim que a sociedade moderna está estruturada neste contexto.
  6.   Acobertar erro profissional:  É difícil fixar o sentido de acobertar. Há vários subgrupos. Um Residente é médico, ele comete erros e eles são fontes tradicionais de aprendizado. Há erros de pequena importância prática e sem consequências, facilmente revertidos, como uma dose de certos fármacos não ajustada para deficiências hepáticas ou renais. Há erros constatados numa cirurgia de revisão imediata. Há erros crassos. A gama extensa traz muitas dúvidas sobre a revelação dos mesmos. Uma conversa amistosa colega-colega? Uma simples anotação em prontuário do paciente? Um direcionamento à Administração superior? Uma denúncia a Comissão de Ética Médica/Conselho Regional de Medicina? Por outro lado, há alguma linha de corte eticamente definida para a comunicação ao paciente a respeito dos vários subgrupos de intensidade e gravidade de erro profissional?
  7. Apresentar honorários separados: É habitual que equipes de especialidades distintas apresentem seus honorários hospitalares separadamente. O time cirúrgico/anestesia também em relação ao primeiro auxiliar, instrumentador, etc…, em que aspectos fiscais entram em jogo.  Contudo, no atendimento clínico hospitalar o mais comum é a apresentação de único honorário ao paciente pelo titular da equipe clínica e a divisão dos valores é feita  segundo critérios internos.  Seria uma infração ética?  Afinal, não é de se esperar que o paciente se sinta prejudicado.
  8. Justa causa para revelar sigilo profissional: Exemplo emblemático da solidão do médico em certas circunstâncias. Uma justa causa não está normatizada de modo que revelações ficam sujeitas a interpretações opostas. Em tese, justa causa refere-se a interesses relevantes da sociedade que nada tem a  ver como caprichos pessoais. Assim, enquanto que expressa autorização do paciente e dever legal– como notificação compulsória de doenças transmissíveis- desconstroem as barreiras a consciência do médico, possibilidades fortuitas devem ser imaginadas, embora não exatamente fáceis de explicitar, assim sendo rotuladas como justas -sem normatização do que possa ser justificável. Ocorrendo uma situação, que se dê um embate de pensamentos. E o resultante ficará invariavelmente vulnerável aos mesmos questionamentos porventura trabalhados na tomada de decisão pela revelação.
  9. Atestar como forma de obter vantagens: Subentende falsidade para proveito à margem da moralidade. Todavia, há situações onde a emissão de atestado verdadeiro e direito do paciente traz vantagens indiretas para o médico. Não creio ser antiético, por exemplo, emitir um atestado a pedido do paciente para sustentar petição para liberação de valor monetário sob custódia judicial para honrar os honorários do médico emissor.
  10. Assinar declaração de óbito de paciente ao qual vinha prestando assistência: É dever do médico quando não houver indícios de morte violenta. Mas nem sempre, a situação é simples. A falta de regularidade no atendimento, uma última consulta longínqua, um total desconhecimento sobre meses passados podem determinar objeções de consciência. É momento onde a Autonomia do médico deve ser considerada.

 

 

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