PUBLICAÇÕES DESDE 2014

221- Imparcial, sendo neutro ou não

Costa_Pinheiro,_Fernando_Pessoa_-_Heterónimo,_1978,_óleo_sobre_tela,_150_x_200_cm
Costa Pinheiro Heterônimo 1978 Óleo sobre tela

Soube da palavra heterônimo quando estava no Colégio Pedro II da rua Barão do Bom Retiro dos inesquecíveis bondes 68 e 72 do Rio de Janeiro e de um Inspetor de Disciplina linha-dura que até hoje não sei se tinha traços de sadismo ou era um fiel cumpridor da visão de profundo respeito da época.pedroii

Interessara-me pela obra do português Fernando Pessoa (1888-1935) persuadido que era um dever cívico bem conhecer o nosso idioma e a linguagem sua ferramenta. Busquei o escritor lusófono e achei do mesmo Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Um ortônimo e três heterônimos.

O heterônimo facilita a expressão sobre realidades exteriores/interiores de modo distinto ao ortônimo, fui aprender numa Enciclopédia, a avó do Google.

Ocorreu-me que se razões existiram para o poeta, deveria aguardar experiência semelhante na profissão já incubada. Interessante, esta previsão aconteceu anos antes do nascimento da Bioética, que se deu em 1971.

Cerca de 4 décadas depois, membro da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da FMUSP, o colega a quem fui ajudar a resolver seu dilema da beira do leito, reagiu com veemência quando dei opinião discordante sobre a sua conduta clínica. Ele manifestou, visivelmente incomodado, que eu estava ali como consultor de ética e não como consultor de clínica. Um direto, nocaute técnico!

Na ausência de um Código de Ética para consultores de Bioética, sentia-me sujeito ao Código de Ética Médica. O referido episódio fez-me debruçar no direito do médico  art. 20 (Código de 1988): exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza. 

Fazia sentido que a Bioética, pela alta afinidade à Medicina, enquadrasse em qualquer outra natureza. Reforço que harmonizar benefício, não malefício (segurança) e autonomia num aconselhamento fundamentado em Bioética requeria um roteiro adaptado, certos efeitos especiais e um olhar de arte na aplicação da ciência por um ser humano a outro ser humano num cenário de possibilidades e incertezas que determinam divergências médico-paciente e médico-médico no âmago de mesma Medicina.

Grande mestre a prática! Deu realce que uma beira do leito vanguardista de tantas provocações ao clássico tinha por necessário cuidados com a natureza e a dose de acréscimos de dúvidas no decorrer do processo de resolução de conflitos. Se sair do labirinto é preciso, entrar noutro por danos da solução é tenebroso.

A lição fez-me recordar dos heterônimos. Chegara a hora? Projetei 3 bonés identificadores da capacitação na investidura de consultor: o boné de clínico por formação- uma vantagem para a compreensão das necessidades técnico-científicas da Medicina para o caso-, o boné da Bioética por afeição- uma construção sensível ao aspecto humano do atendimento- e o boné de cidadão por obrigação.

Diante da imagem indaguei-me: Afinal, deveria ser um ortônimo integrando as 3 fontes de pensamentos ou deveria me ater a heterônimo da Bioética? O que seria mais adequado em meio a movediços hiatos de narrativas e a revelações não ditas, por ocasião de consultorias?

Inclinei-me, inicialmente, pela ideia de um boné com 3 abas deslizantes entre si permitindo gradações circunstanciais. Muito de Bioética, um pouco das demais, muito de duas, etc… Aí, dei-me conta que esta construção significava crer inadmissível que uma consultoria de Bioética soe completamente isenta de ajustes pelos pensamentos clínicos e dever de cidadania. A lição do colega introduziu um freio, mas não conseguia evitar movimentações.

Nestas considerações, desenhei-me como um médico/clínico que no momento da consultoria está aplicando Bioética e nos demais momentos está realizando os trabalhos de clínico, sem nunca, em qualquer dos propósitos, dispensar a condição de cidadão, essencial para a valorização da empatia.  Mas peraí… Não ignorar o dentro de si não é utilizar fora de si? Sim e Não! Explico.

Desde então, numa consultoria de Bioética vigio-me pelo máximo respeito à estratégia clínica adotada pelo colega na situação de confronto. Contudo, não deixo de valorizar meus conhecimentos de clínica e os fundamentos de cidadania. É esmero com a prudência. Esta conselheira sobre o que seria bom ou mau na circunstância, assim facilitando superpor benesses e danos da beira do leito do mundo atual aos impactos no futuro. Imprescindível para dar respostas no campo da Bioética.

O consultor de Bioética – habitualmente, um profissional diplomado em alguma área do saber- gosta do ofício de promover conciliações tolerantes isentas de anti-eticidades e de ilegalidades. Premissas e consequências são matérias-primas da mediação de relações interpessoais em confronto. Uma tarefa exigente da imparcialidade. Uma tarefa exigente da neutralidade. Epa! Não houve uma repetição? Imparcialidade é sinônimo de neutralidade em dicionários.  Não houve repetição, as duas palavras devem ter diferenças de significados numa consultoria de Bioética.  A explicação do sim e não! começa a fluir.

A imparcialidade é inequívoca quanto a independência a fatores externos, tais como pressões de gestores em seus vários níveis. Impensável uma consultoria de favorecimento a uma alta hospitalar antecipada sob alegação de prejuízos econômicos institucionais. Contudo, o teor das parcialidades das partes constitui desafio à neutralidade do consultor.  Ele tem seus valores, sentimentos e objetivos que desencadeiam solilóquios entre o respeito à frieza de princípios e normas a serem cumpridos e o calor irradiado do conhecimento profissional e da cidadania.

Grande questão, pois, é o quanto haverá de neutro – qual um robô- em face a juízos de valor e moral- tal um humano- na modelagem de manifestações de consultoria. Ninguém está livre de ter convicções inegociáveis. No extremo, o senso de integridade pessoal do consultor justifica rejeitar a participação.

A influência de ambiguidades morais do bioeticista sobre os alinhavos, a vulnerabilidade a ameaças da consciência – conflito de interesse peculiar- traz a pergunta: O consultor de Bioética tem direito ou não a objeções de consciência? Se positivo, exige-se uma normatização, se negativo, o “certo” e o “errado” – melhor, o “aconselhável” e o “desaconselhável”- articularão mais fortemente com uma ordenação disciplinar da Bioética.

Creio útil exemplificar a questão perante o dilema universal clássico da transfusão de sangue para paciente Testemunha de Jeová.  Em primeiro lugar, uma consultoria de Bioética a respeito não deve ser praticada nem por praticante da seita nem por intolerante a religiões. Em segundo lugar, o consultor “isento” nunca será neutro. Ele terá sua tendência pessoal de  encarar  as relações entre sobrevida e religião. Mas será imparcial ao, pelo profissionalismo, se abstrair da mesma e centrar-se tão-somente na validade intrínseca de cada interesse sobre a questão. Em terceiro lugar, há critérios, é o enquadramento no risco iminente de morte que, por exemplo, exclui o direito à Autonomia pelo paciente e  privilegia a Beneficência da Medicina, conforme o Código de Ética Médica.  Enfeixando a explicação, boas práticas em consultoria de Bioética  incluem a possibilidade de imparcialidade mesmo que não haja neutralidade em relação às parcialidades.

O consultor de Bioética funciona  qual um heterônimo em constante tensão com a neutralidade. No afã de conter fortemente seus partitivos internos para ser imparcial, ele será sempre um original  para as pluralidades contenciosas. Originalidade que nunca desvaloriza a sua nobre missão por meio de “jeitinhos” descompromissados com a autenticidade esperada.

Confesso que continuo tendo os ruídos mentais que tive por ocasião do episódio que contei acima. Macaco velho, esforço-me pelo silencio deles na expressão de uma resposta de consultor de Bioética. Vacinado estou que não me despersonalizo por isso. A experiência consolidou que a discordância com indicação de transfusão sangue, no exemplo acima, fica embutida na resposta que não há critério para iminente risco de morte.

Muitas vezes é fácil assim proceder… Noutras, recaídas são tentadoras. As ameaças daquele anjinho que aprendemos a valorizar como guardião da higidez clínica da beira do leito.

E você, bioamigo? Dá respostas profissionais com substrato moral permitindo-se certas independências de si mesmo?

   

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