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217- Medicina De(O)fensiva

imagesFoi uma conversa interessante com enorme contexto em Bioética:

Paciente (homem com 60 anos de idade que retorna, pela primeira vez, ao cardiologista que o acompanhou na cirurgia de troca da valva mitral há 2 anos): Pois é doutor, como o exame de cateterismo que fiz antes de operar mostrou que eu tinha 50% de entupimento numa artéria coronária, o cardiologista que me acompanha onde eu moro insiste que eu devo tomar aspirina e estatina.

Médico:  Ele está preocupado com uma possível piora do entupimento.

Paciente: Doutor, eu li muito sobre estes dois medicamentos e cheguei à conclusão que os efeitos colaterais não justificam que eu tome, não sinto nada e não quero ter dor de estômago, dor nos músculos. Agora que me aposentei quero aproveitar a vida. Minha mãe tomava aspirina, o médico lhe dizia que ela estava bem protegida e teve um derrame cerebral hemorrágico que a deixou dois anos entrevada numa cama até falecer. 

Médico: É uma decisão sua não tomar, mas o médico tem obrigação de lhe esclarecer sobre os benefícios de tomar os medicamentos.

Paciente: Eu sei, ele está certo, me explicou  direitinho, mas o que eu não entendo é que toda a vez que eu vou nele ele me dá uma receita com estes dois remédios, mesmo sabendo que eu não vou tomar.

Médico: Mas ele já deve ter anotado no seu prontuário que lhe recomenda, mas você se recusa a usar.

Paciente: Exatamente, doutor, já lhe perguntei isso, mas ele responde que se não me der uma receita é como se ele achasse desnecessário que eu tome os remédios, não estaria sendo um médico que conhece Medicina, que está atualizado. Rasgo a receita assim que chego em casa, nem deixo a minha esposa ver, doutor, o senhor como é que é se ela souber…

Medic.Defens.4Este prescreveu para o paciente, resolveu para si  ilustra uma das infinitas facetas da Medicina Defensiva que tem dominado a realidade médica nos últimos tempos. Cada médico tem sua própria coleção de temores profissionais e os acalma invocando práticas que julga antídotos a juízos que outrem possa fazer de negligência e de imprudência com o paciente, dois vilões da infração ética.

Art. 1º do Código de Ética Médica  vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

É difícil vislumbrar o que o papel da receita nas mãos do paciente acrescentaria em termos de zelo ao suficiente registro em prontuário sobre a não adesão manifesta do paciente capaz à recomendação. Alguém poderia até argumentar que entregar uma receita não desejada a um paciente bem esclarecido e bem convicto  da decisão negativa seria uma violência, como já ouvi de um advogado numa situação análoga pretendendo acusar que houve uma coerção: enfiar goela abaixo com autoritarismo.

Evidentemente, a contraposição acima relatada já deve ter passado pelo estágio da elucidação entre o paciente acreditar ser a melhor escolha e ele desejar esta escolha. Há uma zona cinzenta entre paciente supor  e paciente querer, onde o médico pode exercer o chamado paternalismo fraco, fazer ver ao paciente que a interpretação por ele feita como leigo tem certos equívocos, exageros de cautela, que ele deveria reconsiderar a opinião, “acreditar diferente”. A próxima etapa é a definição pelo paciente do de fato desejo, por exemplo, de não aceitar mesmo após as novas ponderações, o que deverá ser respeitado dentro do chamado princípio da autonomia. Neste contexto, elaborar um documento na contramão do consentimento do paciente – a receita por exemplo- forçando a recepção indesejada pelo paciente poderia ser apreciado como um desrespeito do médico à liberdade de opinar e de se conduzir em relação às próprias necessidades de saúde de quem é que padece de fato da enfermidade. Muitos contra-argumentariam: Se ele mudar de opinião… O efeito esposa existe… Se ele sentir algo, vai repensar….

O comportamento em questão mostra-se de certa forma em oposição ao mais habitual que é a exigência do paciente por solicitações de exame e prescrição de medicamentos longe de critérios admissíveis.

O princípio da autonomia foi incorporado à Medicina como salvaguarda dos muitos horrores praticados contra o ser humano, especialmente na primeira metade do século XX. Que nada passasse a se ser feito sem o consentimento esclarecido do paciente- ou voluntário de pesquisa, foi o desencadeante em harmonia com o humanismo. Acontece que ele é válido tanto para o paciente quanto para o médico. O profissional que não está cogitando em fazer maldades usando em vão o nome da Medicina sente-se incomodado em vir a ser interpretado como negligente e/ou imprudente e assim ver-se  sujeito a um processo ético e/ou legal.

A beira do leito tem suas areias movediças. Confundir acreditar na utilidade com desejo de dela se valer, enroscar-se num juízo de direito do paciente, indispor de tempo hábil esclarecedor são terrenos que prejudicam  sustentação da ética e se tornam propícios para que o atendimento afunde numa burocratização que passa a ser objetivo maior do mesmo, uma papelada que escorre como eficiente guardiã do zelo. Por isso, a Medicina Defensiva tem como um dos seus dublês uma Medicina Ofensiva – no sentido de injuriosa- às boas práticas.

Carimbadas a mais do que necessário acontecem sob nomes de medicamentos, exames complementares, relatórios. Pelos excessos, Medicina De(O)fensiva é cruzamento sob pseudos valores. Folhas de desperdícios por um discutível papel do médico. Não estaríamos na hora de começar a virar a página?

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