PUBLICAÇÕES DESDE 2014

184- Vulnerabilidade, fragilidade e superproteção

DecisãoÉ compromisso ético do ser médico proteger interesses do paciente no âmbito da saúde, a quem deve acolher como um cidadão vulnerável, quer no conceito de permanente pela simples condição de um ser humano, quer no de circunstancial ante suas peculiares relações de vida.

O médico deseja o bem do paciente. É hipocrático!  O que significa pretender o alcance de benefícios e o afastamento de malefícios no exercício da Medicina.

Na prática assistencial, resultam aplicações e/ou evitações do uso de métodos disponíveis, guiadas e ajustadas por incessantes reavaliações da relação utilidade técnica conceitual- segurança biológica individual.

Ponto de interesse da Bioética da Beira do leito é o grau de proteção à pessoa do paciente que o médico entende que é justificável aplicar quando coloca a objetividade das evidências científicas com potencial resolutivo para o caso em plano inferior ao da subjetividade sobre resultados negativos possíveis e, em decorrência, reprove a segurança de alguma conduta cogitável e, até, a rotule como proibitiva.

Já que inexiste iatrogenia zero, danos são sempre mentalizados e, não infrequente, vulnerabilidades circunstanciais ligadas ao corpo do paciente e influentes na apreciação do prognóstico  pós-procedimentos são “humanamente” avaliadas com “lentes de aumento”, vale dizer com o risco do olhar dos exageros. A estimativa de invasão corpórea pela Medicina acima dos limites da sensatez, na óptica de alguém que, corretamente técnico, não deixa de ser vulnerável a próprias circunstâncias pessoais e profissionais. Neste contexto, é clássico que médico não deve cuidar de familiar próximo por dissintonias habituais entre o racional e o emocional. 

Um exemplo é  o caso de um homem de 88 anos de idade que se apresenta em insuficiência cardíaca devido a uma lesão importante de uma válvula cardíaca, não apresentando nenhuma comorbidade de impacto em escore de risco cirúrgico. Não há nenhuma dúvida que uma correção hemodinâmica- substituição da válvula nativa por uma prótese, por exemplo- é o caminho terapêutico para a eficaz reversão da insuficiência cardíaca e regate da boa qualidade de vida.

O médico, porém, enxerga o paciente frágil, com pouca massa muscular e fica indeciso sobre a indicação cirúrgica, mentalizando intercorrências pós-operatórias comprometedoras do prognóstico, que já testemunhou em determinado percentual de casos análogos. Uma visão que não pode ser enfaticamente afirmada ou rejeitada por colegas que são chamados a opinar numa reunião. Inovações são lembradas, últimos artigos remetem a sucessos inicias alhures, ginásticas mentais acadêmicas excitantes acontecem, contudo, inaplicáveis ao paciente em questão num mundo real de não disponibilidades ou de fortes ponderações sobre baixa curva de aprendizado para um “caso que se mostra mais complexo”.

De repente, a transformação das imprevisibilidades numa previsibilidade de mau resultado, sob forte efeito da subjetividade travestida em “opinião da experiência”, dá a sensação de que regredimos a décadas passadas, quando sonhávamos com métodos benéficos que não havia e nada fazíamos de eficiente pelo paciente, e que, os sonhos progressistas realizados, agora, tornaram-se pesadelos em função da (in) segurança na aplicação a paciente dito frágil para receber o benefício, como o do exemplo acima citado. Tudo se passaria como se diante de paciente terminal se estivesse, que, todavia, não preenche os critérios para tal. É importante relembrar a recomendação da American Heart Association sobre a rotulação de fragilidade em casos de portadores de cardiopatia valvar (Quadro).fragil

Num extremo, o calor humano de uma identificação com o próximo, uma hierarquização dos maus resultados vivenciados no decorrer da vida profissional, visando à proteção contra intercorrências comprometedoras, o que, todavia, conduz ao niilismo.

No outro extremo, a frieza de uma recomendação técnica validada, um destaque pelos bons resultados acompanhados. O habitual embate entre necessidades do presente e impactos no futuro num cenário de neutralidade sobre benefício e de carga sobre malefício. As dificuldades de limite entre proteção contra danos evitáveis  de um método e superproteção pela ideia que a aplicação constituiria uma violência.

Será que o médico tem este poder para eliminar uma opção terapêutica cientificamente recomendável por sua estrita análise de perspectivas? Será que assim procedendo de modo paternalístico, ele não estaria extrapolando o conceito de prudência em Medicina indissociável de incertezas e de probabilidades e se sujeitando a uma futura  crítica de negligência, pois não teria dado chance a que o paciente dela pudesse ter certas chances de se beneficiar do que consta útil e eficaz em diretrizes clínicas?

A moderna relação médico-paciente rechaçante do Paternalismo do século XX não exigiria uma apresentação completa das opções terapêuticas com esclarecimentos sobre prós e contras de cada uma delas?  A resposta é afirmativa. Podemos mentalizar a figura acolhedora do garçom que entrega o cardápio a quem se apresentou espontaneamente para a resolução de uma necessidade, explica cada prato e aguarda o pedido dando a sensação que haverá bom atendimento para qualquer decisão. Uma analogia a prato feito não cabe, em ausência de iminente risco de vida. Evidentemente, há as especialidades “da casa” que representam conceituadas expertises.

A prioridade a ser defendida é para o respeito ao Princípio da Autonomia, pelo qual a proteção dos interesses do paciente contará com a sua própria participação, ou seja, do jeito “à moda da casa” definido por quem receberá-ou não- a matéria prima para bens e males. Assim, cada paciente enquadrará em seus valores, objetivos e preferências aquele risco de grave intercorrência que o médico não deseja que se transforme num evento para o paciente, pois altamente comprometedor da sobrevida ou da qualidade de vida pós-tratamento. À medida que o número de CRM torna-se mais baixo, cresce o  testemunho de casos sobre casos onde pacientes admitem a intervenção arriscada por não mais suportar a má qualidade de vida e por ter fé numa boa resolução. Otimismo e pessimismo para suposições de realidades a posteriori, o que sempre deixou a Medicina comprometida com o empenho para o bom resultado, mas sem dar a mais completa garantia do que de fato acontecerá.

Nada é simples. É interessante que o médico tem o direito de não praticar o que entende inútil, ineficaz e até mesmo prejudicial para a circunstância clínica e gestores, inclusive, enfatizam situações de custo-efetividade desfavorável. Cria-se, então a questão ética: a apresentação do menu completo de opções terapêuticas- incluindo indesejadas pelo médico- é compromisso da aplicação com aquela que for a consentida pelo paciente? E se o paciente exigir ajustes que deem novo sentido ao método?  Cada médico deverá se posicionar com o seu direito à Autonomia.

O exercício da Medicina acresce complexidades a cada dia. O progresso técnico-científico roda numa velocidade acima daquela que se pode imprimir a treinamentos de atitudes para harmonização com  as diversidades de caráter, personalidade e temperamento do ser humano- ligadas à vulnerabilidade permanente- e de reação às circunstâncias interligadas com a doença e com os seus cuidados diagnósticos e terapêuticos.

Neste contexto, a Bioética afigura-se como vigorosa plataforma para sustentar as boas práticas da atenção às necessidades de saúde, considerando o que seria mais harmônico com a pergunta fundamental: Boas para quem?

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES